sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Essa noite dormi um assassino


O mundo é cão. Ontem, voltando para casa, atropelei um cachorro preto. Não poderia ter feito isso. O pobre cachorro preto, de mancha amarelada no peito, sucumbiu em espasmos e grunhidos. Eu o confortei em seus minutos finais e orei o Nam-Myoho-Rengue-Kyo, a única oração que aprendi na vida. Relembrando o dia, lembrei ter visto outro cachorro, pequenino, desses que não dão despesa com comida e que certamente não emporcalham a casa como os cachorros grandes, estirado na rua, abandonado em seu fatídico fim. Torci o pescoço quando passei por ele e ainda soltei: — Pobrezinho, tentou atravessar a BR e não chegou ao outro lado. Ou então, podia ser que estivesse faminto e procurasse encontrar de onde vinha aquele cheiro delicioso de ensopado. Morreu. Sozinho, seu pequeno corpo lá, inerte. Hoje, quando voltar para casa, talvez o encontre lá ainda, apodrecendo ao relento. Pobre cachorro, por que não correram as ambulâncias e os bombeiros para socorrer o pobre animal desfalecido? Ok, morreu, é só um cachorro, deixem apodrecer ao relento. Deveriam deixar-me quando eu morrer, pois já menti e fiz tanto mal quanto aquele cachorro faria em dez mil vidas. Mesmo assim, não lhe é dado o direito de um enterro digno. Ah, balela, que enterro que nada; deixem o animal apodrecer. São os animais que nos lambem as feridas, que comem nossos restos de comida, que nos abanam o rabo quando retornamos a casa.

Morreu o cachorro preto. Eu o coloquei no banco de trás do carro e dirigi até a praia do Campeche. Lá, com as mãos, abri uma cova na areia macia e depositei seu corpo. Orei, mais uma vez, o Nam-Myoho-Rengue-Kyo e fui embora. O rádio do carro tocava uma música antiga, o vento do mar soprava sobre a ponte. Entrei na BR e passei pelo viaduto. O pobrezinho ainda estava lá. Sozinho. Dormi — um assassino. O mundo é cão.

(Alessandro Quadros)

Sobre Getúlios, Rafaelas e Gregórios.

Maio de 1995. O calor era insuportável. Encontrei Getúlio Vargas num apartamento modesto do Méier. O velho preparava seu Manifesto Social, a última carta de Getúlio. O "falecido" presidente parecia ainda o homem que diversas vezes eu vira em jornais e revistas. Estava decrépito, não acabado. Perguntei como se mantivera incógnito todos esses anos, e ainda, quais motivos o levaram a simular a sua morte. O velho Getúlio respondeu num tom amável apenas a primeira pergunta. "Só uma pessoa sabia que eu estava vivo. Gregório". Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio e seu único e fiél amigo repousava sonolento numa poltrona próxima. "Ele ficou velho. Dia desses ficou horas para lembrar o meu nome. Se precisar de alguém que me defenda, terei que gritar por Rafaela." Rafaela era sua mais nova assistente, curvas provocantes e seios empinados. Diriam uns se tratar de uma mulher fatal, outros de uma grande prostituta, mas não Getúlio. "Rafaela é sua amante?" Getúlio confirmou com um aceno de cabeça. Aos 127 anos aquele homem ainda tinha a disposição de um garoto e uma amante de 25. A menina aproximou-se e com suaves gestos repousou o café sobre a mesa. "Obrigado meu anjo", disse o velho."Como se manteve tão bem Presidente?" Percebi que a simples menção da palavra "presidente" soava como confirmação de amizade. "Deixei as coisas que não me importavam do lado de fora e me preocupei apenas com as que realmente valiam a pena. Meu lugar na vida pública chegara ao seu fim, que mais me importava? Nos primeiros dias eu fiquei a devorar os jornais. Depois meu interesse foi minguando, até que decidi me abster de leituras políticas e me enfurnei em uma casa na beira da praia. A possibilidade de uma vida normal aos poucos foi se instalando de maneira inevitável. O velho Getúlio dava lugar a um humilde pescador". Um pescador? Que homem na altura da sua importância cogitaria se perder mar afora em busca de peixes e aventuras? "Pescasse presidente?" Perguntei incrédulo. "Sim, e nos mares do sul eu me lancei por 35 anos." Levantou-se e foi buscar um álbum de fotos na outra sala. Rafaela permaneceu imóvel em seu lugar. Ousei perguntar-lhe alguma coisa. "Tens noção de quem é o homem com quem deitas?" A moça consentiu com um olhar que me deixou encabulado. Rafaela era um poço de pecado. A saia justa e as pernas grossas e bem torneadas eram irresistivelmente provocantes. Se a moça perdesse a parte de cima, ainda assim valeria pelo restante. Lábios grossos em cima e finos embaixo, cabelos castanhos cacheados. Que mais teria que ter? A Bunda, sim, a Bunda com iniciais maiúsculas. Se noutro acidente lhe restasse apenas a bunda, também ainda valeria. Os olhos eram quase esverdeados. Tinha uma cara de menina sapeca, safada pra não perder a descrição. Olhei demoradamente e percebi seios volumosos que ousavam extrapolar os limites do sutiã de bojo. Era deliciosamente a mulher mais gostosa que eu já tinha visto com um presidente. Nem o Itamar Franco seria capaz de audaciosa façanha. Como aquele velho conseguia? "Ele ainda...?" Rafaela acenou com um sim. Velho miserável pensei. Getúlio retornou. Trouxera um punhado de papeís velhos, rascunhos, anotações antigas. "E as fotos presidente?" O velho parou por um instante e ficou a me fitar demoradamente. Resolvi esquecer as fotos. "Presidente, o que o fez desaparecer?" O velho disse que não responderia a esse pergunta. Insisti e disse que a única razão daquele encontro era essa resposta. Ele disse que se contasse alguma coisa que não as suas aventuras nos mares do sul, teria que desaparecer novamente. Desisti. Não queria ver aquele velho novamente um fugitivo. O resto da conversa foi amistosa. Contou-me coisas que só um velho seria capaz de lembrar. Enquanto ele falava eu via apenas Rafaela, nua.
Getúlio morreu duas semanas após o nosso primeiro e derradeiro encontro. Quando Rafaela ligou ainda era madrugada. Ela chorava e dizia baixinho que seu velho havia morrido. Eu a encontrei vinte minutos depois no Grants. A menina trouxera Gregório a tiracolo. "Ele não tem para onde ir". "Mas é o Gregório Fortunato, não posso levá-lo para casa, que dirão os vizinhos?" A menina insistiu."Se ele não for, eu também não." Cedi. Levei-os para casa e na mesma noite descobri o elixir da juventude de Getúlio Vargas. Exausto, perguntei o que matara o velho. A menina não confessou o crime. "Agora chega, se eu disser alguma coisa terei que te matar". Nunca mais repeti a pergunta. Duas semanas depois Rafaela foi embora. Dizia o bilhete: "Fracassado miserável, vou embora." Depois da Rafaela o que me restou foi o Gregório. Estou aprendendo a gostar do sujeito. A única que não gosta dele aqui em casa é a Joana, minha empregada. Se ele parar de vomitar no sofá eu acho que ela muda de opinião.